Foram dezoito anos de silêncio, vergonha e medo até que a jornalista e escritora Adriana Negreiros pudesse falar sobre o assunto. Escreveu “A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil” (2021, Objetiva), obra em que parte do trauma de um estupro para lançar luz sobre relatos de mulheres vítimas de violência. Ela participou ao lado da escritora e crítica literária Micheliny Verunschk da mesa-redonda “O corpo, o espanto e a fala: escritas de testemunho”, na programação deste sábado (12) da XV Bienal Internacional do Livro do Ceará.
“Foram 18 anos de solidão em relação a essa história. Vivi quando tinha 28 anos, começando carreira como jornalista em São Paulo”, recorda Adriana, que cresceu e estudou jornalismo em Fortaleza. A mesa-redonda teve mediação da antropóloga Glória Diógenes – que também é escritora, tendo lançado na programação da Bienal o livro “Sangue no olho d’água” (2024, Urutau). A proposta do encontro era pensar sobre os disparadores da escrita das duas autoras, discutindo a relação entre experiências femininas e a criação literária.
Micheliny é poeta e romancista, tendo entre seus livros mais premiados a obra “O som do rugido da onça” (Companhia das Letras, 2021), vencedora do Prêmio Jabuti. O livro toma como ponto de partida histórias verídicas de duas meninas indígenas que foram raptadas por pesquisadores alemães durante expedição científica no Brasil do século XIX. Além do vasto material de pesquisa, os cientistas regressam à Europa levando as duas crianças que morreram logo em seguida.
Nascida em Recife, mas vinda de uma família do sertão do Cariri, a autora recorda que a história das duas crianças se aproxima de relatos familiares e de pessoas da região sobre antepassados indígenas, quando meninas eram capturadas “no laço” por homens brancos. As poucas fontes históricas sobre o caso das crianças e as possibilidades narrativas que a ficção lhe propiciava, a levaram a recriá-la em forma de romance. O ponto de vista dos raptores, reforça a autora, desumaniza as crianças. “Não posso escrever minha história sobre esse ponto de vista. Aí, recorro à cosmologia indígena, dando voz aos macacos, às onças, aos rios, para dar voz também a esses personagens”, situa Micheliny.
Do trauma ao texto
Dar voz ao outro foi também o caminho tomado por Adriana Negreiros para situar socialmente a violência que sofreu. “Não era uma história só sobre mim. Esse espanto de que a vida pode se encerrar a qualquer momento é um temor que nós mulheres temos e que os homens não tem noção do que é. Escrever foi quase um trabalho terapêutico, de lidar com aquela experiência”, rememora a jornalista.
O livro foi escrito durante a pandemia, quando a autora realizou entrevistas virtuais com mulheres vítimas de violência. Adriana conta que, antes da escrita, apenas um pequeno grupo de amigos sabia o que tinha acontecido. De uma jornalista alegre e destemida – ou espevitada, como ela define no linguajar cearense – passou a experimentar o medo e o silêncio. “Eu tinha dificuldade de contar para minhas filhas, de contar para as pessoas próximas. Aí, quando contei, o espanto foi delas. Foi muito libertador. Foi quase como se tivesse recuperado parte da alegria que tinha perdido”, lembra.
Escrever o livro permitiu que hoje, quase duas décadas depois do episódio, a autora possa lembrar e falar do assunto sem que ele lhe roube a alegria. “Quando você responde à violência com alegria, embora ‘a vida nunca mais será a mesma’, mas ela pode ainda ser muito boa. A grande libertação é quando a gente mostra que aquilo não nos venceu. A alegria pode nos guiar mesmo que a gente possa ter vivido experiências muito tristes”, reflete a escritora.
Neste domingo (13), Adriana Negreiros volta à programação da Bienal do Livro. A autora participará, das 16h às 18h, da mesa-redonda “Biografia: Do Jornalismo para a Literatura”, ao lado da também jornalista e mestra em História Luiza Helena Amorim. O encontro acontecerá na Sala Adísia Sá (1º Mezanino, sala 7) e é parte do eixo Vozes Mulheres.
A Bienal Internacional do Livro do Ceará é uma realização do Ministério da Cultura (MinC) e do Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura (Secult), em parceria com o Instituto Dragão do Mar (IDM), via Lei Rouanet de Incentivo à Cultura. O evento conta com o patrocínio do Banco do Nordeste, Rede Itaú, Cagece e Cegás.
Serviço:
Bienal Internacional do Livro do Ceará
Quando: 4 a 13 de abril, das 9h às 22h
Onde: Centro de Eventos do Ceará – Avenida Washington Soares
Gratuito e aberto ao público
Programação no site: https://bienaldolivro.cultura.ce.gov.br